sexta-feira, 14 de julho de 2006

Falando sério agora

Já que o último post não acrescenta nada à humanidade, decidi postar um texto meu escrito no ano passado. É sobre escola, e este é um tema sobre o qual tenho refletido desde que iniciei minha carreira de professor insatisfeito. Porque há duas carreiras: professor satisfeito e professor insatisfeito. Estou no segundo grupo há seis anos, e por isso decidi parar de dar aula por um tempo. Faça-se a ressalva de que a escola em que trabalhei nos últimos dois anos tem buscado mudar alguns dos pontos que critico no texto, mas longe longe longe de fazer de mim um professor satisfeito. Não é culpa dela, como não é culpa de nenhuma escola da rede privada. Mas vai o texto, então:


A crise no ensino particular em Brasília


Não é só o ensino público que tem perdido qualidade nos últimos anos, no Distrito Federal. O ensino particular passa por uma grave crise, que não é recente e que já foi diagnosticada por diversos educadores, sem que medidas tenham sido efetivamente tomadas. Três fatores podem ser discutidos como causas dessa crise: a redução da autonomia do professor; a valorização das matérias da área de Exatas; e o resultado desproporcionalmente vantajoso das instituições particulares nos vestibulares.

O aluno da escola privada é hoje tratado como um cliente, que precisa ser agradado, satisfeito, priorizado. O professor, na maioria das escolas do DF, perde fácil qualquer disputa com um aluno. Isso caracteriza um problema, na medida em que o trabalho do educador fica limitado àquilo que o aluno acha melhor. O nível de seriedade em sala, de aprofundamento dos conteúdos, de rigor disciplinar e de exigência nas provas é ditado pelo aluno e pela coordenação pedagógica, e não pelo professor. As escolas estão interessadas em não perder o cliente, mesmo que isso custe contestar a autoridade do professor, ou até alterar notas de alunos desinteressados e incompetentes, para evitar reprovação, o que reforça, para essas crianças e adolescentes, diversos comportamentos inadequados.

Outra questão é a valorização das disciplinas de Exatas: mesmo que o Vestibular da Universidade de Brasília tenha mudado a proposta para uma prova mais conceitual, contextualizada e interpretativa, o nível de dificuldade das provas de Matemática e Física (principalmente) é muito mais elevado que o das provas de História, Geografia, Artes ou Português, para não falar da prova de Redação, que exige apenas que o aluno obtenha em torno de 20% da pontuação máxima para ser aprovado. A priorização do ensino de matérias das Exatas é uma decorrência da reforma educacional promovida pelo regime militar e, ao invés de ser contestada após o processo de redemocratização, foi amplamente reforçada. Os alunos da rede particular saem do ensino médio sem conhecer a história do país, sem entender de política, com apenas algumas noções dos conflitos mundiais, sem entender de arte, sem conhecer a literatura brasileira, lendo mal e, sobretudo, sem saber escrever um texto coerente ou se expressar oralmente, numa situação de formalidade.

O obstáculo, na verdade, do ensino particular é o ensino público: o modelo adotado pela rede pública é o mesmo de sempre, desde quando a educação era restrita apenas às classes mais altas. As escolas públicas continuam enfatizando um modelo de ensino voltado à assimilação de uma quantidade estúpida de conteúdo; um modelo que avalia o aluno pelas notas obtidas (e quando não o faz, aprova por condescendência, como nas instituições particulares), um modelo em que o aluno, até os quase 18 anos de idade, não é estimulado a pesquisar nem a fazer escolhas quanto ao conteúdo que prefere estudar com profundidade, visto que o interesse de todos é a aprovação no Vestibular. No entanto, as escolas particulares têm obtido muito mais sucesso no seguimento desse modelo do que as instituições públicas, aprovando muito mais alunos no concurso para a universidade e provando a toda a sociedade que o ensino público está falido e que o privado é a melhor solução. Em suma, a sociedade acredita que o aluno deve passar pelo menos onze anos da sua vida dentro de uma escola só para ser aprovado no Vestibular, e que a melhor escola para isso é a particular.

O problema educacional brasileiro não é de investimento, mas de paradigmas, e as escolas privadas do DF têm reforçado os erros do modelo. A mudança não vai começar por elas, porque são empresas e precisam buscar mesmo é liquidez. A mudança começará pela universidade, que precisa assumir a responsabilidade de propor um sistema de avaliação que enfrente os problemas atuais. Trata-se de uma avaliação menos objetiva, menos mecânica, que induza as escolas a valorizar mais a pesquisa do que a decoração de conteúdos, mais a formação humanística do que a aplicação automática de fórmulas, mais o educador do que o cliente. Duas podem ser as principais consequências da mudança na forma de avaliação para ingresso na universidade: a melhora na capacidade de aprendizagem dos novos universitários e, mais importante que isso, a diminuição do abismo que favorece o ingresso de alunos da rede privada no ensino superior, em detrimento dos estudantes da rede pública.

Um comentário:

CrissMyAss disse...

Falando sério também!
Colégios particulares que dão ênfase demais às exatas: Passei por isso em um colégio que dividia as turmas segundo o critério "exatas, biomédicas e humanas"; mas a importância que essa escola dava em aprovar para a Engenharia da Puc era tanta que até os professores de história e biologia das turmas exatas eram melhores que os das outras.
Não apenas os colégios vêem os alunos como clientes, como também seu alvo no mercado é bastante definido. Quem quiser que trate de se adequar.
Para mim, qualquer prova simples de matemática ou física é mais difícil que a mais difícil de inglês ou história, portanto não sei se saberia avaliar com isenção o que vc afirma...
Quanto à questão disciplinar, autoridade do professor x satisfação do cliente, acho que a culpa maior é dos pais. Os atuais alunos são filhos de uma geração que achava tudo um saco e que tinha pais muito caretas. Eu mesma fui muito contestadora e "rebelde sem causa", mas hoje sou capaz de ver que sem um colégio rígido dificilmente eu teria ido muito adiante...imagino que pais da minha geração possam não dar valor à hierarquia e disciplina: vejo que em casa os filhos tratam os pais como colegas de quarto e participam das questões familiares em igualdade com os pais. Acho que esse comportamento naturalmente se repete na escola, eles nem sequer compreendem que exista uma hierarquia a ser respeitada. Existe um descaso geral, basta ver que os jovens não mais são obrigados a nenhum compromisso que considerem enfadonho (incluindo cumprimentar a avó ou agradecer um presente) e ninguém respeita os idosos.
Também acho que é o "cliente final" ou seja, a Universidade, quem efetivamente pode promover uma mudança. Mudando o vestibular e seus critérios, mudaria também a abordagem das escolas.
Também a sociedade, pais e alunos, deixam tudo muito por conta das instituições. Não há crítica nem há debate, porque já nem há mais classe média na escola pública, como havia nos anos setenta.
(Hoje bem que gostariam de poder contar com uma rede pública, não estivesse ela tão deteriorada e imersa em greves estúpidas).
Não podemos pretender que pais pobres e semi-analfabetos tenham condições de criticar a escola. E os pais das escolas particulares esperam que estas façam o que são pagas para fazer, com o mínimo de interferência em suas atribuladas vidas.