Quero escrever um manifesto contra a música. (Aliás, por música entenda-se, ao longo de toda esta postagem, o conjunto de todas as possibilidades, melódicas ou não, mais ou menos ritmadas, acompanhadas de vozes cantando letras que atendam a um continuum bastante abrangente no que diz respeito ao bom gosto, sendo a maior parte das menções à referida palavra um tanto imprecisa mas que inclua batida percussiva e um baixo bastante marcado. Ou não.) Mas voltando ao ponto, acho que deveria ser proibido música em ambientes públicos. Eu sei, logo eu, um músico e tal, parece um contrassenso. Mas o fato é o seguinte. Música só é bom quando a gente escolhe ouvir. Não é necessariamente a música que a gente escolhe, mas o momento em que se quer ouvir música. E só é bom quando a gente, não gostando, pode evitá-la, dar as costas, ir embora. Como qualquer outra arte: não gostou, desliga, sai de fininho, tece um comentário embromador praquele parente que pinta umas coisas estranhas, ou escreve poesia marginal, hum, sim, claro, muito interessante, agora me deixa ir que eu tenho que pegar o bonde etc. Ou o pessoal que vende livro nos bares à noite, que educadamente pergunta, posso mostrar meu trabalho, e você dá ouvidos e olhos, ou não, conforme lhe aprouver.
Mas com a música não é assim. Cada vez mais (e é cada vez mais mesmo) a música ocupa nosso espaço diário. Forçadamente, quero dizer. Qualquer restaurante tem música, ao vivo ou não. Elevador tem música (nunca ao vivo, infelizmente). No clube tem música. No supermercado tem música. Na casa dos amigos tem música. Na festa do vizinho tem música. Na praça tem música. No banco, na oficina, no ônibus. Agora, com celulares escandalosos de todo tipo, tem música na rua, no meio da rua, enquanto você anda a pé ou espera alguém ou desce à padaria ou caminha no parque. Tem música embaixo da janela do seu apartamento. Música na TV, o tempo todo todo todo. Nos estádios de futebol, nos autódromos. Nas lojas. Nas livrarias. E, claro, nos carros. Este é o pior caso, e sobre ele é que eu quero destilar meu ódio mortal.
Os carros são boates ambulantes. Aliás pior que boates, porque a intenção de uma boate é ter música pra quem está dentro (embora incomode quem está fora). Mas nos carros não: a música é exclusivamente para chamar a atenção de quem está fora. Ainda que a quilômetros de distância. E os carros passam pelas ruas, um atrás do outro, seguidamente, cada um com uma música diferente (às vezes dá a impressão de que não são diferentes). Uns passam velozes, e mal se distingue a batida. Outros passam lentos, deleitando-se em fazer um barulho de proporções enlouquecedoras. Os que passam, no entanto, sejam lentos sejam velozes, são o mal menor. O ruim mesmo, o que tira o sossego à vizinhança, o que causa perturbações psíquicas ainda não estudadas pelos nossos estudiosos de perturbações psíquicas, são os que param. Nas praças, nos postos, nos estacionamentos, no quintal do vizinho. E abrem as portas, e o porta-malas, e aumentam o volume, e se exibem na sua imensa estupidez para espalhar infelicidade e desconforto a quem quer que seja. Uma violência gratuita, proposital, covarde. Não são pessoas más, diz a polícia, quando ligamos desesperados, estão apenas ouvindo música. E eu queria apenas moer a cabeça de uma dessas pessoas não más no meu triturador de alimentos, só uma moidinha, seu guarda, eu também não sou mau.
A música entra nos seus pensamentos, se mistura ao seu raciocínio, bota palavras na sua boca, faz tremer o seu corpo que queria ficar bem quietinho em silêncio. Treme as suas janelas, retumba no fundo do seu corredor, se confunde com as batidas do seu coração, de modo que você, ao deitar, não consegue distinguir entre elas e o tuntstunts do carro em frente. A música está nos enlouquecendo, aos poucos, compassadamente.
Outro dia aqui em Brasília um sujeito foi espancado quando foi reclamar do som alto de um carro em um posto de gasolina. Depois disso, seguiram-se boicotes, matérias no jornal, listas negras. A pressão funcionou e, pelo menos no que me diz respeito, minha vida melhorou muito. Embora o problema não tenha acabado, diminuiu espantosamente. O que prova tratar-se de um problema de solução simples: polícia e mobilização da imprensa e da vizinhança. Nem precisa usar o triturador de alimentos.
Mas fui a Pirenópolis neste fim de semana (para quem não sabe, Piri é uma cidadezinha colonial a duas horas de Brasília, com cachoeiras e trilhas e reservas de vida silvestre em volta, e uma vida noturna agitada e interessante), e lá, como aqui, por todos os lados os beócios passam ou param seus carros com um som num volume tão alto que chega a disparar os alarmes dos outros carros estacionados. Se você olha pra dentro do carro, vê normalmente quatro ou cinco jovens com expressões faciais que denunciam intelecto reduzido, pouca capacidade articuladora, falta de competência sexual, nenhum resquício do que um dia foram o tímpano, o martelo e o alicate (eu nunca lembro as ferramentas certas), sem falar na postura ridícula, curvadinhos em seus bancos reclinados. Aos quarenta anos, no máximo, além de surdos, estarão parecendo dromedários (sem ofensas aos camelídeos). Isso se eu não cruzar com um deles antes num beco escuro e com o meu triturador à mão.
São os piores tipos de idiotas da nossa sociedade. Conseguiram estragar a que eu considero a mais importante das artes, aquela mais íntima, a de mais afetiva presença nas nossas vidas, a arte que embala nossos namoros, que atenua nossas dores, que espanta nosso medo, que acompanha nossa solidão e alegra nossas festas.
Eu escuto e canto música o dia inteiro. Com os fones de ouvido num volume que compense as músicas-ambiente da cidade, devo ficar surdo pouca coisa depois desses pacóvios dos carros-boates. Mas é a minha música. Tem a ver com o que eu estou sentindo, com os acordes que vão me dar serenidade ou adrenalina na medida que eu escolher. E eu posso, a qualquer momento, desligá-la. Eu não vivo sem música. Mas estou convencido de que, numa sociedade madura e feliz, a música deve ser proibida em locais públicos. Como o cigarro e o boquete. Excetuando-se, evidentemente, os locais públicos de destinação específica para música, todos com devido isolamento acústico. Uma pena que eu não me candidatei a deputado nestas eleições. Nem provavelmente o farei jamais. Mas, se eu fosse eleito, o primeiro projeto que apresentava era o da proibição da música. Fora, música! Abaixo a música! Vivam os tampões de ouvido, os quais são responsáveis pelo que ainda resta do meu equilíbrio mental.
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