“Mas foi então que consegui ver a cara da barata.
Ela estava de frente, à altura de minha cabeça e de meus olhos. Por um instante fiquei com a mão parada no alto. Depois gradualmente abaixei-a.
Um instante antes talvez eu ainda tivesse podido não ter visto na cara da barata o seu rosto.
Mas eis que por um átimo de segundo ficara tarde demais: eu via. Minha mão, que se abaixara ao desistir do golpe, foi aos poucos subindo de novo lentamente até o estômago: se eu mesma não me movera do lugar, o estômago recuara para dentro de meu corpo. A boca secara demais, passei uma língua também seca pelos lábios ásperos.
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.
Eu nunca tinha visto a boca de uma barata. Eu na verdade — eu nunca tinha mesmo visto uma barata. Só tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência — mas nunca a defrontara, nem mesmo em pensamento.
E eis que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada uma pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer mais uma casca, e mais uma. Talvez as cascas fossem as asas, mas então ela devia ser feita de camadas e camadas finas de asas comprimidas até formar aquele corpo compacto.
Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados.
A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata, e cada olho reproduzia a barata inteira.
(…)
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.”
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. (trecho)
Ela estava de frente, à altura de minha cabeça e de meus olhos. Por um instante fiquei com a mão parada no alto. Depois gradualmente abaixei-a.
Um instante antes talvez eu ainda tivesse podido não ter visto na cara da barata o seu rosto.
Mas eis que por um átimo de segundo ficara tarde demais: eu via. Minha mão, que se abaixara ao desistir do golpe, foi aos poucos subindo de novo lentamente até o estômago: se eu mesma não me movera do lugar, o estômago recuara para dentro de meu corpo. A boca secara demais, passei uma língua também seca pelos lábios ásperos.
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.
Eu nunca tinha visto a boca de uma barata. Eu na verdade — eu nunca tinha mesmo visto uma barata. Só tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência — mas nunca a defrontara, nem mesmo em pensamento.
E eis que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada uma pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer mais uma casca, e mais uma. Talvez as cascas fossem as asas, mas então ela devia ser feita de camadas e camadas finas de asas comprimidas até formar aquele corpo compacto.
Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados.
A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata, e cada olho reproduzia a barata inteira.
(…)
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.”
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. (trecho)
3 comentários:
Eu odeio baratas. ;P
Isso é porque ainda não é a parte que ela come a barata.
(argh)
bjs
Gostei desse fragmento de texto, nunca havia percebido tantos detalhes em uma barata!
Interessante e asqueroso ao mesmo tempo!
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