domingo, 11 de março de 2007

As intermitências da morte

Terminei de ler recentemente As intermitências da morte, novo (ok, não tão novo assim, mas só agora eu fui ler), o mais recente, então, romance do Saramago. Eu sou suspeitíssimo para comentar, porque gosto muito de tudo o que o velho portuga escreve. Os ensaios, os esporádicos poemas, os contos e, principalmente, os romances, belíssimas obras de acabamento linguístico impressionante e de grande criatividade. Gosto das histórias malucas que ele inventa, das situações tão improváveis que só mesmo na pena irônica e alegórica de Saramago é que podem ganhar algum sentido.

Mas confesso que, depois de ter lido Memorial do convento, não consigo mais achar os demais livros dele tão estupendos. Acho que o Memorial é uma obra tão perfeitamente escrita, tão tão tão bela, tão humana (adjetivozinho miserável que não diz nada, não é mesmo?), de uma elaboração formal tão rica e diferente, que obnubilou (carái!) o brilho de tudo o que fui ler depois. Parece um pouco como se a fórmula tivesse chegado ao seu ponto máximo no Memorial. Deixe-me esclarecer que não li os romances dele na ordem em que foram escritos, então mesmo romances anteriores a esse já não me parecem a mesma coisa após tê-lo lido.

Mas voltemos ao da Morte. Aliás, antes que eu seja fulminado, morte. É um belo livro, com mais uma situação bastante inusitada e criativa. Mas o que gosto principalmente em Saramago é o carinho com que ele constrói seus personagens, os quais o leitor acompanha desde as primeiras páginas até o final da história e de quem vai gostando cada vez mais. No último romance, contudo, o autor opta por narrar boa parte da história sem focalizar nenhum personagem, ou melhor, focalizando esporadicamente vários deles. Recurso, aliás, repetido do livro anterior, Ensaio sobre a lucidez. Particularmente, esse anonimato narrativo, que dá aos fatos importância maior que à construção mesma dos protagonistas (aliás, não os há; ou são, no mínimo, intermitentes), esse recurso, dizia, me parece neutralizar uma das qualidades maiores (a maior, a meu ver) dos textos dele, que é justamente a construção dos personagens.

Outro recurso que, apesar de ser marca registrada de Saramago, já me cansou um pouco é a metalinguagem, a constante análise que ele vai fazendo das palavras usadas na história. Interrompe-se várias vezes a história para se analisar por que foi utilizada tal ou tal palavra e não outra. É uma estratégia formal interessante, muitas vezes divertida, mas lá pelo décimo livro que você lê dele fica meio boba.

De todo modo, o livro é bom, gosto de seu estilo, o desfecho é belo (embora não tão surpreendente quanto costumam ser os desfechos de Saramago), o texto não perde ritmo, a alegoria proposta conduz a reflexões sobre assunto de extrema relevância. Há traços daquele anticlericalismo ingênuo que mancha vários dos livros dele, mas, no fim das contas, gostei da leitura e acho que o velho portuga continua com a corda toda. Esperemos apenas que o próximo livro deixe um pouco de lado as narrativas desprotagonizadas e nos apresente ao menos um ou dois daqueles personagens que trago impregnados na minha própria personalidade, como o Sr. José, como Cipriano Algor, Baltasar e Blimunda, ou o próprio Cristo humanizado do Evangelho. São eles o que há de maior na obra desse que é, ainda e certamente, meu escritor predileto.

ATUALIZAÇÃO: O mais recente livro de Saramago chama-se Pequenas memórias, mas não se trata de um romance. E está na minha lista de próximas leituras...

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